domingo, 3 de março de 2019

Mitos sobre o cérebro humano

Boa noite pessoal,

Essa matéria tem como objetivo desmistificarmos, juntos, alguns dos maiores mitos existentes sobre o funcionamento do nosso cérebro e sistema nervoso central (SNC).

Já escrevi uma matéria rápida sobre o mito de utilizarmos apenas 10% da nossa capacidade cerebral, que se encontra no link abaixo:


Os mitos que vou abordar estão difundidos no meio popular, alguns seculares, sobre o tamanho, sobre a forma, sobre o funcionamento ou sobre a capacidade do nosso órgão mais complexo.

Vamos analisar alguns:

1- O famoso mito dos 10%


Alguém ai nunca ouviu essas história?

Que só utilizamos 10% da capacidade do nosso cérebro? Ou mesmo que utilizamos apenas uma parcela de toda nossa capacidade cerebral?

Existem filmes, inclusive filmes de Hollywood (o mais novo chama Luci) que apoiam ou fantasiam em cima dessa ideia.

Acredita-se hoje que essa história começou em 1908, com o livro "The Energies of Men" de William James. 

Nele, o autor diz que utilizamos uma pequena parte da nossa real capacidade cerebral.

Porém, um importante detalhe que não foi dito em momento algum, ele nunca atribuiu uma porcentagem à quantidade da capacidade cerebral que utilizamos (nem 10%, nem 30%, nem 100%), apenas escreveu que não utilizávamos toda a capacidade desse órgão tão magnífico.

Outra parte da história diz que esse conhecimento do livro de 1908 foi muito bem visto e utilizado por pessoas que acreditavam em telecinese e poderes psíquicos (como entortar colheres com o olho ou mover as coisas de lugar com a força do pensamento). 

Para as pessoas que acreditavam nisso, foi uma prato cheio. Se as pessoas normais utilizam 10% da capacidade cerebral, é óbvio que quem utiliza mais que isso, até mesmo os 100% de capacidade, são aqueles que conseguem utilizar telecinese e os poderes psíquicos, como a nossa querida Eleven (Millie Bobby) do seriado Stranger Things.


Lá se foram mais de 110 anos e o mito continua firme e forte. 

Mas sinto falar que não, não é verdade. 

Eu sinceramente não posso afirmar que existe ou que não existe telecinase e poderes psíquicos, mas posso afirmar para vocês que não utilizamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral.

Utilizamos, bem provavelmente, grande ou toda a capacidade do nosso cérebro em nossas atividades diárias.

2- Aprender dormindo

Seria realmente ótimo, não? Dormir enquanto escutamos aulas e dicas de inglês, e pronto. Em um passe de mágica, acordamos e somo fluentes na língua inglesa.

Sinto desapontar vocês mas não existe uma pesquisa sequer que comprove esse mito.

Outras matérias do blog discutem o papel no sono na retenção de memórias. Mas, que já fique claro aqui, reter memória é bem diferente de criar memórias durante o sono.

Provavelmente, o que colaborou para a disseminação desse mito, foi uma pesquisa lançada em 2014, por Schreiner e Rosch, que concluíram em seu estudo que ensinar um idioma durante as fases de sono não-REM aumentava a capacidade das pessoas em memorizar novas palavras ao despertar.

Grande detalhe aqui: quantas horas enquanto acordadas essas pessoas estudavam a língua em questão? Qual o nível de conhecimento dessas pessoas na língua ensinada no estudo? Quais as reais condições deste estudo? Muitas questões, poucas respostas.

O que a neurociência diz hoje é que não existe método capaz de nos ensinar dormindo e que ninguém vai aprender matéria alguma por osmose, dormindo em cima dos livros.

A pesquisa de 2014 pode ser verdadeira? Pode sim. Quando dormimos nossos sentidos, como a audição, não são desligados, eles apenas diminuem suas atividades. Então, se passarmos horas escutando algo durante o sono, pode ser que esse conteúdo novo fique em nosso "subconsciente" e que depois, quando acordados, conseguiremos aprender mais rápido. Porém, esse conteúdo por si só vai virar uma memória fixa se estudarmos enquanto estamos acordados. Não existe mágica no processo de aprendizagem.



3- Escutar Mozart ou jogar alguns jogos vão te deixar mais inteligente

Esse mito começou a surgir em 1991, quando um estudo da Universidade da Califórnia apontou que dos 36 estudantes envolvidos em uma teste de capacidade mental, os 18 que escutaram 10 minutos de Mozart antes de realizar o teste foram melhores que os que não escutaram.

Sem contar os infinitos detalhes que precisam ser esclarecidos sobre esse estudo, dificilmente escutar Mozart, Rolling Stones, U2 ou qualquer outra banda vai influenciar na capacidade cognitiva de uma pessoa. Escutar música ou meditar, por exemplo, podem sim ajudar antes do teste se fizer bem para você, se te ajudar a controlar a ansiedade, diminuir o nervosismo. Mas te deixar mais inteligente não.

Mesmo com a neurociência dizendo que não, milhares de produtos saíram no mercado após a pesquisa. Produtos de criança que tocavam pequenos trechos de composições de Mozart, alegando que as crianças ficariam mais inteligentes. 

Imaginem um brinquedo, que toca 30 segundos de uma composição de Mozart (qual delas e porque eu não sei), gerando crianças mais inteligentes. Onde estão os grandes Einsteins ou Mozarts que poderiam ter surgido com esse aumento de inteligência mágico?

Seguindo a mesma linha de pensamento, diversos jogos para celulares saíram e foram vendidos para milhares e até milhões de pessoas alegando a mesma coisa: me joguem e ficarão mais inteligentes. Adivinhem, não aconteceu.

Em 2010, uma revisão bibliográfica de várias pesquisas que relacionaram música e conhecimento não encontrou relação alguma ou qualquer sinal de existência do chamado "efeito Mozart". Efeito de aumento de inteligência com músicas ou jogos!

Concluindo, mais um mito. 

Ninguém fica mais inteligente fazendo apenas essas coisas. Não vai fazer mal, muito pelo contrário, quanto mais pensarmos para resolver algo, quanto mais relaxarmos com boas músicas e ler bons livros, mais fortaleceremos conexões e circuitos em nosso cérebro, o que nos faz muito bem e ajuda a manter nosso cérebro sempre jovem e saudável. 

A diferença é que, se não estudarmos e aprendermos coisas novas, não ficaremos mais inteligentes. Seja com ou sem Mozart.


4- Funções dos hemisférios direito e esquerdo


Mais um mito difundido na população.

Um mito muito conhecido que diz que pessoas mais criativas, artistas, poetas, músicos, possuem o hemisfério direito mais desenvolvido que o esquerdo. E também que pessoas mais lógicas, os matemáticos, contadores, economistas, teriam o hemisfério esquerdo mais desenvolvido que o direito.

Pessoal, é o seguinte: existem sim, funções diferentes que são geradas em um hemisfério ou outros. Sendo mais exato, existem funções específicas, como a fala, que tem início em uma região específica do cérebro, no hemisfério esquerdo, mas que precisa de funções coordenadas pelo hemisfério direito para ser realizada.

Resumindo, entre pensar em falar algo (hemisfério esquerdo) e essas palavras saírem da sua boca, muitas regiões distintas do cérebro foram ativadas e trabalharam de maneira coordenada (hemisférios direito e esquerdo). Ou seja, envolve os dois hemisférios cerebrais.

Outro exemplo clássico para notarmos a importância dos dois hemisférios para nosso dia-a-dia é que quem controla o lado direito do seu corpo é o hemisfério cerebral esquerdo, e o contrário também é verdadeiro.

Uma pesquisa da Universidade de Utah, nos EUA, analisou 1000 cérebros e descobriu que nenhuma pessoa utilizava preferencialmente o hemisfério direito ou o esquerdo.

Nem as pessoas analisadas, nem os cientistas que realizaram o estudo. Todos estavam utilizando os dois hemisférios de forma igual e coordenada.

Para finalizar essa parte, leiam o trecho retirado de uma reportagem online da Revista Superinteressante, seguida do link:

"Considere, por exemplo, o caso de dois rapazes acompanhados pela neurocientista Mary Helen Immordino-Yang, da Universidade do Sul da Califórnia. O adolescente argentino Rico e o jovem americano Brooke (nomes fictícios) literalmente perderam metade de seu cérebro: Rico teve o hemisfério direito cirurgicamente retirado para controlar a epilepsia e Brooke tirou o esquerdo como prevenção a uma doença autoimune. Tanto Rico quanto Brooke continuam sendo capazes de andar, falar, raciocinar e interagir socialmente – o que seria impossível se houvesse uma divisão absoluta de tarefas entre os hemisférios cerebrais."



5- Álcool mata neurônios?

Em 1993, Grethe Jensen analisou cérebro de pessoas que consumiam álcool e pessoas que nunca tinha consumido bebidas alcoólicas. Sua conclusão: não houve qualquer diferença entre a quantidade de neurônios entre essas pessoas.

Até agora, o que se sabe é que o único álcool que tem a capacidade de matar células do nosso cérebro é o álcool 100%. Então, o que a neurociência tem para nos dizer atualmente é que podemos tomar nossa cervejinha e nosso vinhozinho tranquilamente sem nenhum risco real para o cérebro, só não podemos consumir o álcool 100%.

Mas vale ressaltar que da mesma maneira como outras substâncias que ingerimos, o segredo está na dose! 

Pessoas que abusam de álcool, com grande frequência, como os alcoólatras, acabam sim com funções cognitivas danificadas e também com funções motoras danificadas. Vocês conseguem imaginar o caminhar de um bêbado, certo? Muitos casos de alcoolismo terminam com a pessoa se locomovendo dessa forma pro resto da vida, pois o cerebelo (região muito importante para a nossa postura, caminhada e equilíbrio) acaba danificado, com uma menor quantidade de neurônios.

Por isso, todas as propagandas com bebidas alcoólicas terminam com Beba com Moderação!



6- Danos cerebrais são permanentes

Aqui, temos um caso variável.

Os danos podem ser permanentes ou não, dependendo do tipo e da gravidade da lesão em questão.

Alguma concussões, por exemplo, interrompem funções cerebrais por determinado tempo, e depois essas funções voltam ao normal. 

O que acontece nesses casos, muitas vezes, é que um inchaço devido a um edema pressiona alguma região específica do cérebro atrapalhando suas funções. Conforme vai diminuindo o inchaço, as funções vão voltando ao normal.

Porém, lesões maiores, como um AVC isquêmico, que acabam causando a morte diversos neurônios de uma região específica, as funções podem não ser recuperadas, se tornando sequelas, como a dificuldade de locomoção, de fala, de formar novas memórias...

Um exemplo de lesão que se recupera, que sempre utilizo, é a síndrome conhecida como Síndrome da Negligência hemi-espacial, muito bem representada pela figura abaixo:


A figura mostra auto-retratos de um artista plástico após um AVC. Essa síndrome é caracterizada pela pessoa simplesmente passar a ignorar metade do corpo, seja ela a esquerda ou a direita. A pessoa passa a ignorar metade do corpo, como se fosse algo estranho.

Nesse exemplo da figura, o artista em questão desenhou, no primeiro mês menos da metade do seu rosto. Ao longo dos meses, sua lesão e sua percepção foram melhorando, até que no último desenho ele já reconhece seu rosto por completo.

Outro exemplo encontram-se na figura abaixo:




Para encerrar a discussão desse tópico precisamos sempre ter em mente a enorme capacidade de aprendizado do nosso cérebro, o que hoje é conhecida como plasticidade neural, uma capacidade que discuto em outras matérias de neurociência no blog e que está diretamente relacionada com nossa capacidade de aprender coisas novas.


7- Quanto maior o cérebro, maior a inteligência

Para discutir este último mito, começamos analisando a figura abaixo:


Sabemos que o elefante é um animal extremamente inteligente, que tem até a capacidade de utilizar ferramentas. Como faz ao utilizar gravetos para coçar regiões do corpo que a tromba não alcança.

Mas, pensem comigo. Se o elefante, com um cérebro três vezes maior que o nosso, fosse mais inteligente, bem provável que eles estariam no controle e desenvolvendo uma cultura, e não a gente.

Mas vamos analisar alguns números:

A pesquisa da neurocientista brasileira Suzana Herculano, mostrou que os elefantes possuem cerca de 3 vezes o tamanho e a quantidade de neurônios que nós humanos. 

Ou seja, o cérebro deles possui aproximadamente 257 bilhões de neurônios, contra nossos 80-100 bilhões. 

Mas um grande detalhe no cérebro destes enormes mamíferos, 251 bilhões de neurônios se encontram em seu cerebelo, ficando responsável pelo equilíbrio e por coordenar a caminhada deles (fácil de entender, pois um animal daquele tamanho precisa de um cerebelo extremamente desenvolvido para se manter em pé e controlar um corpo que pesa algumas toneladas). 

Assim, os elefantes possuem "apenas" 6 bilhões de neurônios espalhados por todo o córtex cerebral, cerca de um terço do que nós possuímos, em média 20 bilhões. E a neurociência sabe hoje que, as grandes funções cognitivas que possuímos, como nossos pensamentos, nossa capacidade de imaginar o futuro e histórias, são derivadas do córtex cerebral.

Concluímos assim que o tamanho não é o fator determinante para a inteligência, e sim a distribuição e forma de utilização das células cerebrais.


Terminamos aqui essa matéria sobre os mitos que rondam o cérebro humano.

Espero que tenham gostado.

Qualquer dúvida, comentem abaixo ou me mandem um e-mail.

11 comentários:

  1. Honestamente, eu nunca acreditei em nenhum dos mitos citados, porém não sabia da real verdade por trás deles.

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  2. Acredito que como a maioria eu também já conhecia os mitos, sempre fico muito desconfiado de teorias sem base científica, mais uma vez a ciência mostrando que "achismos" são fáceis de serem espalhados, mas logo caem por terra.

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  3. A questão dos hemisférios era uma grande dúvida para mim,não sabia se realmente era verdade mas não desacreditava totalmente pois sempre ouvia sobre.

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  4. Confesso que ainda tenho minhas dúvidas sobre a telecinese rsrsr pois eu acho que ainda existem muitos mistérios não desvendados pela ciência, como por exemplo, a existência do espírito além da matéria do corpo físico! No entanto, não acredito nos outros mitos acima citados, já ouvi muitos deles (principalmente o dos 10% da capacidade do cérebro).

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  5. Nunca tive nenhuma dúvida sobre os mitos citados, mas é incrivel entender como cada um deles se tornou "verdade" para alguns hoje em dia.

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  6. Eu acreditava no mito dos 10%, inclusive já ouvi teorias de que se o ser humano usasse 100% do cérebro ele derreteria. KKKK bizarro

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  7. Eu acreditava nas, “Funções dos hemisférios direito e esquerdo”, mas agora, ao ler o texto, compreendi e tirei todas as minhas dúvidas.

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  8. Eu acreditava no mito dos 10% da capacidade e Para piorar achava inatingível os 100% kkk

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  9. Não acreditava em nenhum mito, mas ler as explicações foi de extrema relevância!

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  10. Não conhecia a maioria desses mitos, mas o " Aprender dormindo " era o que eu botava fé Haha... Muito bom ver essas explicações

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