terça-feira, 28 de setembro de 2021

Memória e Aprendizado III

Bom dia pessoal,

hoje encerramos a tríade de matérias sobre Memória e Aprendizado.

As duas primeiras, em ordem, vocês podem ler nos links abaixo (recomendo a leitura delas antes da matéria de hoje, vai fazer mais sentido a discussão):



Hoje vamos falar um pouco sobre perda de memória e amnésias, e depois, finalizando a tríade, falaremos sobre reconsolidação e a extinção de memórias, um assunto fascinante.



Primeiro, não podemos confundir esquecer alguma coisa com problema de memória. 
Eu aposto que muitos de vocês já falaram, em algum momento, que estavam com problemas de memória. Uma boa notícia, dificilmente isso é verdade.

Sabe por quê? O que temos, muitas vezes, é uma falta de atenção. Se eu não presto atenção no que estou fazendo, dificilmente vou registrar qualquer tipo de memória sobre aquele episódio.

Podemos escrever de outra forma: quanto mais atenção, ou quanto mais focado estou na tarefa/experiência que estou fazendo/vivendo, maiores as chances do meu cérebro entender aquilo como importante e registrar como uma memória de longo prazo.

Entendeu, agora, porque você esquece onde deixou a chave do carro ou as chaves da casa? Simplesmente porque você talvez nem tenha olhado para onde colocou ela, rs.


Um exemplo clássico: chegamos em casa, falando no celular, brincando com o cachorro, segurando as sacolas do mercado e colocamos a chave em cima da mesa ou do sofá, não vamos lembrar onde deixamos a chave depois. Por conta de um problema de memória? Óbvio que não, apenas falta de atenção (observem a quantidade de coisas que estavam fazendo ao mesmo tempo, dividindo a atenção de vocês).

Mas, seguindo, temos que ter em mente também que algumas substâncias e alguns comportamentos podem influenciar sim nossa memória, e nesses casos, essa influência é negativa:
  • Consumo exagerado de álcool;
  • Algumas drogas, como a maconha (prejudica a formação de novas memórias, aparentemente apenas durante as fases de uso - relacionado com a diminuição na atenção e não à morte neuronal, como por muito tempo se foi falado);
  • Estresse - inimigo mais comum da nossa memória: Mais estresse é igual a mais tempo focado, prestando atenção no fator estressante, o que resulta em uma diminuição na formação de memórias durante o dia;
  • Alterações no ciclo sono-vigília, em especial, noites e mais noites mal dormidas - lembrem-se, as memórias de longo prazo são formadas ao longo das nossas noites de sono - logo, sono de menor qualidade ou abaixo das horas necessárias = prejuízos cognitivos e de memória;
  • Medicamentos, variando com as classes e quantidades ingeridas;
  • Ansiedade e depressão;
  • Apneia obstrutiva (altera drasticamente a qualidade do sono).

Observem que, todos eles, são comportamentos ou condições que podem ser alterados. E em nenhum dos casos estou falando cronicamente, ainda faltam estudos para o consumo crônico ou para condições de saúde crônicas sobre a formação e qualidade da nossa capacidade de memória.
Porém, a insônia crônica já é evidente como um fator que afeta drasticamente nossas capacidades cognitivas, nossas memórias e diversos outros aspectos mentais e físicos no nosso corpo.

Durmam!

Diferente dos itens citados acima, temos as amnésias. Verdadeiros "problemas" de memória, cujas causas podem ser as mais variadas.

Além das amnésias, podemos pensar em doenças degenerativas, como o Alzheimer, que pela destruição e morte de tecido nervoso que vão causando ao longo do tempo, prejudicam a formação de novas memórias e ainda apagam muitas memórias antigas.

Amnésias:


Primeiro fato, aquela amnésia de Hollywood não acontece, ou melhor, é raríssima. 

Uma pessoa acordar sem saber sobre nada do que se passou antes na sua vida, sem saber nome, sem saber cidade de origem e coisas básicas do tipo, acontece mais em filmes e séries do que na realidade.

As amnésias reais, que acometem pessoas que sofreram algum trauma crânio-encefálico, por exemplo, afeta nossa memória declarativa, aquela que definimos anteriormente como a memória para fatos e eventos (que conta a nossa história).

Principais causas: concussões (ex: boxe), alcoolismo crônico, encefalites, tumores cerebrais e acidentes vasculares cerebrais.

Dentre as amnésias possíveis, o tipo mais comum é conhecida como amnésia dissociativa, é o tipo de amnésia onde não existem outros prejuízos cognitivos, "apenas" a perda de memória. 

Nesse tipo, é possível estabelecer uma relação direta entre o dano cerebral e a perda de memória.

Existem duas subdivisões da amnésia dissociativa: a amnésia retrógrada (onde a pessoa esquece os fatos antes do trauma) e a amnésia anterógrada (cujos problemas de memória ocorrem depois do trauma, atrapalha a formação de novas memórias).

Observem os dois tipos em um gráfico do livro de Neurociências do Beer:



Notem que, no primeiro tipo, a retrógrada, dificilmente a pessoa esquece mais do que meses ou alguns anos anteriores ao trauma, raramente se perde toda a memória, o que é mais comum em casos terminais de Alzheimer, pois todo o cérebro encontra-se afetado.

Já a anterógrada, onde a formação de memórias fica prejudicada após o trauma, então podemos pensar em uma relação maior com o hipocampo ou alguma outra área relacionada com o processo de transformar as memórias de curto prazo em memórias de longo prazo.

Consolidação de Memórias e Áreas cerebrais envolvidas:

Por muito tempo acreditou-se que o Hipocampo armazenava todas as nossas memórias. Tudo que existia registrado em nosso encéfalo estaria restrito a essa pequena região. O que deixou muitos cientistas preocupados, visto que uma lesão nessa área afetaria todas as lembranças da vida de uma pessoa.

Isso começou a ser contestado quando um paciente, de nome Henry Molaison (famoso HM), foi submetido a uma cirurgia para retirada do lobo temporal. 

Não foi a esmo, os médicos observaram com as tecnologias da época que as crises de epilepsia e as convulsões eram originadas especificamente nessa região. Os remédios e tratamentos convencionais não resolviam, e a cirurgia parecia a melhor solução.

Observem na figura a região do cérebro dele que foi retirada na cirurgia:


O que os médicos observaram após a cirurgia mudou o conceito sobre armazenamento de memórias. 

As memórias declarativas de Molaison foram mantidas. Ele lembrava de familiares, de figuras famosas e de fatos ocorridos antes da cirurgia, porém, não formava novas memórias declarativas. 

A partir desse ponto, começou uma nova linha de pensamento em relação ao armazenamento das memórias. O lobo temporal contém o Hipocampo, e se, após a retirada do hipocampo ele não perdeu suas memórias antigas, significa que as memórias não são armazenadas ali, ou pelo menos não todas elas.

Recomendo o vídeo abaixo para entender melhor o caso do HM:


ou pelo link:



Hoje, o caminho que uma memória traça ao ser guardado em nosso encéfalo é conhecido como Engrama. 

Sabe-se que o hipocampo é essencial para a formação de novas memórias, principalmente no processo de transformar uma memória de curto prazo em uma memória de longo prazo, atividade que é auxiliado pelo córtex entorrinal. 

Sabe-se também que os engramas encontram-se distribuídos ao longo do encéfalo, nas mais diversas regiões. Esses fatos, hoje claros, explicam as características do quadro apresentado por Molaison depois da cirurgia.

Podemos apagar nossas memórias?

De uma forma saudável, sem uma lesão cerebral, não. 

Não conseguimos aplicar alguma substância, ou utilizar uma luz branca como no MIB para apagar nossas memórias, sejam elas recentes ou as de longa data.

Apesar de fictício, vale a pena assistir ao filme abaixo:



No filme é possível sim, apagar memórias ou episódios específicos.

Na realidade, infelizmente, não conseguimos (ainda?) realizar esse processo.

O que podemos trabalhar e fazer é o processo de reconsolidação de memórias, e talvez aqui esteja a grande base neurobiológica dos tratamentos psicoterápicos através da conversa.

Na verdade, toda vez que evocamos uma memória, nós a alteramos um pouco, pois muitos dos elementos daquela memória, como a cor da roupa das pessoas envolvidas, não está guardado junto à experiência, então o nosso cérebro encaixa novas informações para completar a "imagem" do episódio antigo.

Hoje, sabemos que quanto mais acionamos uma memória, quanto mais trazemos ela à tona, maiores as chances de alterar a memória inicial.

Quando repetimos esse processo, como em uma terapia, podemos chegar ao ponto de Extinção dessa memória, um momento mágico onde conseguimos separar a memória (pensando em um trauma) da dor que ela causa. Um momento de quebra, fantástico.

Para deixar de uma forma mais clara, é o que acontece quando em um tratamento, buscamos lá no fundo a causa de nossas dores (uma lembrança traumática, a perda de um ente querido, um abuso durante a infância...), depois de lembrar, trabalhar em cima dessa memória conseguimos separar a memória da dor, o que definimos ali em cima como extinção da memória. 

Separar a memória (a qual não conseguimos apagar) da dor que ela gera é uma das grandes belezas da Psicologia. É magnífico esse processo de reconsolidação e exclusão.


Espero que tenham gostado dessas três matérias sobre memória. 

Bons estudos pessoal!

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