domingo, 19 de maio de 2019

Memória e Aprendizado III

Bom dia pessoal,
hoje encerramos a tríade de matérias sobre Memória e Aprendizado.

As duas primeiras, em ordem, estão nos links abaixo:



Continuando, hoje vamos falar um pouco sobre perda de memória e amnésias, e depois, finalizando a tríade, falaremos sobre reconsolidação de memórias, um assunto fascinante.

Primeiro, não podemos confundir esquecer alguma coisa com problema de memória. Já falamos sobre isso na aula sobre Consciência e Atenção. 


Se não prestamos atenção em algo, não lembramos desse fato depois porque simplesmente não formamos uma memória sobre. Um exemplo clássico, se chegamos em casa, falando no celular, brincando com o cachorro, e colocamos a chave em cima da mesa ou do sofá, não vamos lembrar onde deixamos a chave depois. Problemas de memória? Óbvio que não, apenas falta de atenção.

Temos que ter em mente também que algumas substâncias e alguns comportamentos podem influenciar negativamente a nossa memória:
  • Consumo exagerado de álcool;
  • Algumas drogas, como a maconha (prejudica a formação de novas memórias, aparentemente apenas durante as fases de uso);
  • Estresse;
  • Alterações no ciclo sono-vigília, em especial, noites e mais noites mal dormidas;
  • Medicamentos, variando com as classes e quantidade ingerida;
  • Ansiedade e depressão;
  • Apneia obstrutiva (altera drasticamente a qualidade do sono).

Observem que, todos eles, são comportamentos ou condições que podem ser alterados. E em nenhum dos casos estou falando cronicamente, ainda faltam estudos para o consumo crônico ou para condições de saúde crônicas sobre a formação e qualidade da nossa capacidade de memória.

Diferente dos itens citados acima, temos as amnésias.

- Amnésias:


Primeiro fato, aquela amnésia de Hollywood não acontece, ou melhor, é raríssima. Uma pessoa acordar sem saber sobre nada do que se passou antes na sua vida, sem saber nome, sem saber cidade de origem e coisas básicas do tipo, acontece mais em filmes e séries do que na realidade.

As amnésias reais, que acometem pessoas que sofreram algum trauma crânio-encefálico por exemplo, afeta nossa memória declarativa, aquela que definimos anteriormente como a memória para fatos e eventos.

Principais causas: concussões, alcoolismo crônico, encefalites, tumores cerebrais e acidentes vasculares cerebrais.

Dentre as amnésias possíveis, o tipo mais comum é conhecida como amnésia dissociativa, é o tipo de amnésia onde não existem outros prejuízos cognitivos, "apenas" a perda de memória. Nesse tipo, é possível estabelecer uma relação direta entre o dano cerebral e a perda de memória.

Existem duas subdivisões da amnésia dissociativa: a amnésia retrógrada (onde a pessoa esquece os fatos, de algum tempo, antes do trauma) e a amnésia anterógrada (cujos problemas de memória ocorrem depois do trauma, atrapalha a formação de novas memórias - lembrem do filme como se fosse a primeira vez - a protagonista lembrava de tudo antes mas não formava novas memórias).

Observem os dois tipos em um gráfico do livro de Neurociências do Beer:



Notem que, no primeiro tipo, a retrógrada, dificilmente a pessoa esquece mais do que meses ou alguns anos anteriores ao trauma, raramente se perde toda a memória, o que é mais comum em casos terminais de Alzheimer, pois todo o cérebro encontra-se afetado.

- Consolidação de Memórias e Áreas cerebrais envolvidas:

Por muito tempo acreditou-se que o Hipocampo armazenava todas as nossas memórias. Tudo que existia registrado em nosso encéfalo estaria restrito a essa pequena região. O que deixou muitos cientistas preocupados, visto que uma lesão nessa área afetaria todas as lembranças da vida de uma pessoa.

Isso começou a ser contestado quando um paciente, de nome Henry Molaison, foi submetido a uma cirurgia para retirada do lobo temporal. Não foi a esmo, os médicos observaram com as tecnologias da época que as crises de epilepsia e as convulsões eram originadas especificamente nessa região. Os remédios e tratamentos convencionais não resolviam, e a cirurgia parecia a melhor solução.

Observem na figura a região do cérebro dele que foi retirada na cirurgia:


O que os médicos observaram após a cirurgia mudou o conceito sobre armazenamento de memórias. As memórias declarativas de Molaison foram mantidas. Ele lembrava de familiares, de figuras famosas e de fatos ocorridos antes da cirurgia, porém, não formava novas memórias. 

A partir desse ponto, começou uma nova linha de pensamento em relação ao armazenamento das memórias. O lobo temporal contém o Hipocampo, e se, após a retirada do hipocampo ele não perdeu suas memórias antigas, significa que as memórias não são armazenadas ali, ou pelo menos não todas elas.

Hoje, o caminho que uma memória traça ao ser guardado em nosso encéfalo é conhecido como Engrama. Sabe-se que o hipocampo é essencial para a formação de novas memórias, principalmente no processo de transformar uma memória de curto prazo em uma memória de longo prazo. Sabe-se também que os engramas encontram-se distribuídos ao longo do encéfalo, nas mais diversas regiões. Esses fatos, hoje claros, explicam as características do quadro apresentado por Molaison depois da cirurgia.

- Podemos apagar nossas memórias?

De uma forma saudável, sem uma lesão cerebral, não. Não conseguimos aplicar alguma substância, ou utilizar uma luz branca como no MIB para apagar nossas memórias, sejam elas recentes ou as de longa data.

Apesar de fictício, vale a pena assistir ao filme abaixo:



No filme é possível sim, apagar memórias ou episódios específicos.

Na realidade, infelizmente, não conseguimos (ainda?) realizar esse processo.

O que está acessível hoje é o que chamamos de reconsolidação de memórias, e talvez aqui esteja a grande base neurobiológica dos tratamentos psicoterápicos através da conversa.

Hoje, sabemos que quanto mais acionamos uma memória, quanto mais trazemos ela à tona, conseguimos modificá-la, um passo de cada vez, de tal forma que após algumas vezes em que lembramos e pensamos sobre ela conseguimos alterar a memória inicial.

Para deixar de uma forma mais clara, é o que acontece quando em um tratamento, buscamos la no fundo a causa de nossas dores (uma lembrança traumática, a perda de um ente querido, um abuso durante a infância...), depois de lembrar, trabalhar em cima dessa memória e reconsolidá-la, conseguimos separar a memória da dor. Separar a memória (a qual não conseguimos apagar) da dor que ela gera é uma das grandes belezas da Psicologia. É magnífico esse processo de reconsolidação.



Espero que tenham gostado dessas três matérias sobre memória. Em breve novos assuntos sobre neurociência.

Obrigado pela atenção!

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