segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Uso e abuso de psicofármacos no Brasil - reflexões

Boa noite, pessoal.

Hoje vamos falar um pouco sobre o uso (e mais perigosamente, o abuso) de psicofármacos aqui no Brasil. Certeza que você conhece alguém que usa diazepam, rivotril, ritalina, sertralina, dentre inúmeras outras opções de ansiolíticos, antidepressivos e aqueles relacionados ao déficit de atenção.

São as reflexões sobre o material que produzi para a palestra Aplicações clínicas da Neurociência, ministrada no Primeiro Seminário de Neurociências, Bem-estar e Qualidade de vida, organizada pela Liga de Psiquiatria e Saúde Mental da UFSJ.


A fisiologia do corpo humano é fascinante, manifestando-se de forma belíssima através das minuciosas funções celulares que ocorrem em nosso organismo. Nossas células que, por mais distintas que sejam, a nível morfológico e funcional (ou seja, em formato, aparência e função, rs), necessitam dos mesmos combustíveis e realizam processos bioquímicos muito semelhantes para sobreviver.

No nível celular, uma intrincada orquestra de processos regula a homeostase, a resposta a estímulos e a replicação, permitindo a manutenção e adaptação do nosso corpo. Adaptação é uma característica marcante da espécie humana, que se adaptou para viver, se reproduzir e dominar os mais diversos ambientes do planeta, incluindo temperaturas extremas.

Além da capacidade de adaptação e da forma como trabalham para manter nosso organismo funcionando da maneira adequada, as células compartilham entre si a Membrana Celular, que reveste toda a célula e cumpre papéis essenciais para a vida celular, como proteção, organização interna e formato, além da magnífica Permeabilidade seletiva.

Através de suas características físicas, como ser formada por fosfolipídeos, e pelas suas características químicas e de tamanho, a membrana celular consegue regular o que entra e o que sai das nossas células, gerando aqueles potenciais de difusão, equilíbrio, permitindo a osmose, tudo aquilo que eu sei que vocês amaram na Fisiologia básica, rs.

Mas tem dois tipos celulares onde a membrana celular atua em dois potenciais diferentes das demais células, os potenciais de repouso e de ação, característicos das células excitáveis, os músculos (esquelético, cardíaco e liso) e neurônios.

As células excitáveis são essenciais para o funcionamento e as funções do sistema nervoso (neurônios), para movimentos (músculo esquelético) e para o bom funcionamento dos órgãos e organismo de uma forma geral (músculo cardíaco e o músculo liso nos órgãos).

Os músculos, por exemplo, são células especializadas em contração e relaxamento, fundamentais para o movimento, postura e suporte aos órgãos internos.

Por outro lado, os neurônios, as células nervosas, transmitem informações através de impulsos elétricos e substâncias químicas, formando as bases da comunicação no sistema nervoso.

É nas sinapses químicas, as conexões entre os neurônios, que acontecem fenômenos como a plasticidade neural, fundamental para o aprendizado e a memória.

É importante explorar a relação entre a fisiologia cerebral, a plasticidade neural e o processo de aprendizagem. As sinapses químicas, onde neurotransmissores desempenham um papel crucial, são essenciais para a transmissão de informações e para a adaptação do cérebro a novos estímulos. Pensando em aprendizado, que envolve também a atenção, necessária para uma boa formação de memórias, temos os neurotransmissores dopamina e noradrenalina. Uma das regiões cerebrais envolvidas nesse processo é o córtex pré-frontal.

Alterações nesse sistema podem levar a condições como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), uma condição neurobiológica comum, diagnosticada em crianças e adultos, que afeta diretamente a capacidade de focar em algo específico (como o conteúdo da escola ou pontos importantes para execução correta de um cargo de trabalho). Não tem como fugir, se não prestar atenção em algo, isso não será registrado em forma de memória de longo prazo, a base do nosso conhecimento.

Além disso, a impulsividade característica do transtorno dificulta ainda mais o processo de focar a atenção em algo, somando mais uma dificuldade para o aprendizado e a manutenção de comportamentos.

No Brasil, o TDAH é uma realidade preocupante, afetando milhões de indivíduos. O tratamento normalmente envolve fármacos estimulantes do sistema nervoso central, como o metilfenidato (famosa Ritalina), que atuam aumentando a biodisponibilidade de dopamina e noradrenalina nas sinapses. Conseguem fazer isso bloqueando o processo de recaptação desses neurotransmissores, permitindo um aumento dos mesmos nas sinapses envolvidas. Isso melhora os sintomas característicos do transtorno, melhorando a atenção, a capacidade de foco e, consequentemente, e também drasticamente,  o aprendizado da criança.

Mas o grande detalhe é: muitas crianças utilizando o medicamento devido a um diagnóstico errôneo, mal feito. Psicofármacos. Como a ritalina, alteram o funcionamento do cérebro. Na infância e adolescência, o cérebro se encontra em pleno processo de expansão, com a neuroplasticidade bombando, aprendendo e aprendendo cada vez mais, através da interação dos cinco sentidos com o ambiente. Utilizar substâncias nessa fase, mais precisamente até por volta dos 21 anos (quando se completa o desenvolvimento do sistema nervoso), pode acarretar alterações e afetar o futuro desses “pacientes”.

Pesquisas apontam que ratos tratados com Ritalina durante o desenvolvimento do sistema nervoso (algo como 4-7 anos em idade de humanos) apresentaram problemas de memória e também alguns problemas cognitivos na vida adulta. Inclusive, uma maior tendência a sintomas de apatia, característicos de um transtorno depressivo. Recomendo, para explorar mais essa ideia, o documentário Take your pills (eu assisti na Netflix).

Contudo, o uso indevido dessas substâncias por pessoas sem o diagnóstico adequado pode levar a efeitos adversos graves, como dependência e problemas de atenção e memória. O uso de ritalina por estudantes cresceu drasticamente nos últimos anos, principalmente entre os estudantes da área da saúde. Problemas de atenção e aprendizado que não existiam, podem ser criados com  o abuso desses fármacos.

Além do TDAH, outro grande desafio de saúde mental é a ansiedade, que aflige milhões de pessoas no Brasil e globalmente. O Brasil é, até o ano atual, 2023, o país considerado como o mais ansioso do mundo, pela ONU.

Para seu tratamento, benzodiazepínicos são frequentemente prescritos, agindo como depressores do sistema nervoso central. Imaginando a ansiedade como um cérebro acelerado, desacelerar ele vai desacelerar os sintomas. Aumentando as funções do neurotransmissor GABA, o neurotransmissor naturalmente depressor do nosso sistema nervoso, os ansiolíticos conseguem fazer com que a pessoa relaxe daquela tensão da ansiedade, que alivie aqueles sintomas que consomem sua energia mental e, muitas vezes, até a física.

Seu uso também cresceu drasticamente nos últimos anos, explodindo durante e após a pandemia do coronavírus.

O problema não é o uso correto, é o abuso.

Esses medicamentos, como o Diazepam, podem levar a uma tolerância, exigindo doses maiores para o mesmo efeito, e, consequentemente, à dependência. Isso mais no longo prazo, também bastante associado à automedicação.

Lembrando que, os melhores resultados para tratamentos de ansiedade e depressão, foram aqueles obtidos com a mistura entre terapia e farmacologia. Muitos casos, principalmente os mais brandos a médios, podem ser tratados apenas com terapia, sem necessidade do remédio. Porém, remédio sem terapia é muleta, vai causar vício e aliviar os sintomas exclusivamente durante o uso. Você pretende utilizar o medicamento para toda a vida?

 Para finalizarmos nossa discussão, um outro enorme problema que afeta a saúde mental dos brasileiros e das pessoas pelo mundão afora é a depressão.

A depressão, uma das principais causas de incapacitação no mundo, também tem implicações na fisiologia cerebral. Apesar de inúmeras causas para a doença, variando entre genéticas e ambientais (normalmente uma mistura das duas), a biologia parece passar pelo déficit de serotonina e noradrenalina, sendo o mecanismo da primeira mais compreendido atualmente.

Se o problema é a falta deles, vou utilizar fármacos, como os inibidores da recaptação de serotonina ou de serotonina e noradrenalina, que conseguem aumentar a disponibilidade dos neurotransmissores e gerar um processo de neuroplasticidade incrível, que começa no aumento da produção de receptores e caminha para um aumento na produção dos próprios neurotransmissores. A adaptação cerebral (plasticidade) é uma coisa incrível. Outros antidepressivos atuam nas enzimas que quebram esses neurotransmissores, o que também resulta no aumento da disponibilidade dos mesmos.

Existem diversos tipos, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), que não causam dependência física. No entanto, é crucial ressaltar que os antidepressivos não são substâncias viciantes, mas sim de uso controlado e monitorado, devendo ser administrados sob orientação profissional.

Em conclusão, a compreensão da fisiologia do corpo humano, especialmente no contexto da saúde mental, é vital para a busca de tratamentos eficazes. Além disso, quanto maior o conhecimento de neurociência dos profissionais envolvidos com a saúde mental, mais eficientes serão os diagnósticos, evitando o uso errôneo e o abuso de psicofármacos.

Além dos medicamentos, a terapia e o acompanhamento especializado por psiquiatras e psicólogos são peças-chave no quebra-cabeça do bem-estar emocional e mental, proporcionando uma abordagem completa para lidar com as complexidades da mente humana.

Vale sempre a reflexão antes do uso, é sempre importante analisar o custo-benefício do tratamento, trazendo à discussão os possíveis efeitos colaterais que podem surgir, principalmente em tratamentos prolongados.

Links relacionados aqui no blog:

http://plantandociencia.blogspot.com/2023/09/a-beleza-da-memoria-humana.html

http://plantandociencia.blogspot.com/2023/05/resposta-ao-estresse.html

http://plantandociencia.blogspot.com/2022/09/cerebro-funcoes-incriveis-i.html

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